Dirceu Frederico Sobrinho, o chamado ‘rei do ouro’, usou notas fiscais de garimpos apontados como “fantasmas” pelo Ministério Público Federal (MPF) para liberar parte de uma carga de 67,43 kg de ouro apreendida pela Polícia Militar (PM) do Mato Grosso. No total, o material é avaliado em R$ 21 milhões.
Garimpos fantasmas são lavras que só existem no papel. Ou seja, locais que têm autorização para exploração, mas que não produzem de fato o minério. Eles são usados para ocultar a real origem de metal extraído irregularmente de áreas sem permissão.
Em junho de 2020, a PM recolheu o ouro e mais de mil notas fiscais em um avião a serviço da FD Gold, empresa da qual Frederico Sobrinho é sócio, no aeroporto da cidade de Água Boa (MT).
Por lei, todo carregamento de ouro deve ser transportado juntamente com as devidas notas fiscais. Apesar do elevado número de papéis encontrados pelos policiais, parte da carga apreendida não estava coberta pelos documentos, segundo os agentes.
A Repórter Brasil identificou que ao menos 35 notas fiscais, correspondentes a cerca de 4,5 kg de ouro (R$ 1,38 milhão), têm como origem oito Permissões de Lavra Garimpeira (PLG) com suspeitas de irregularidades.
As PLGs são autorizações concedidas pela Agência Nacional de Mineração (ANM), órgão do governo federal, para a extração de minérios.
Essas oito PLGs são citadas em uma ação civil pública (ACP) movida em 2021 pelo Ministério Público Federal do Pará (MPF-PA) contra a FD Gold. As coordenadas apontam para áreas sem vestígios de desmatamento, um indício de que não houve exploração no local e de que ouro atribuído àquela lavra pode ter outra origem.
Para os procuradores que assinam a ACP, a prática indica uma “possível lavagem de capitais mediante indicação, na primeira aquisição de ouro, de uma origem minerária fictícia”. A ação ainda não foi julgada.
Além de sócio da FD Gold, Frederico Sobrinho também é presidente da Associação Nacional do Ouro (Anoro). No ano passado, ele foi preso temporariamente no âmbito de uma operação da Polícia Federal que investiga exploração ilegal de ouro por balsas e dragas em rios da Amazônia.
Por meio de sua assessoria de imprensa, a FD Gold afirmou que há uma “falsa correlação entre produção de ouro e passivo ambiental visível em imagens de satélite”. Segundo a companhia, o tamanho da área explorada interfere no monitoramento remoto. “[Quanto] menor for a grota, mais concentrado é o teor de ouro, ou seja menor será o tamanho necessário do barranco, e mais difícil será a visualização por imagem de satélite.”
Já a ANM reconhece que cabe a ela fiscalizar as atividades de lavras, mas afirma que “não tem como agir em todo o rol” das suas competências, “tendo em vista a escassez de recursos”. A autarquia afirma que deveria estar operando com 2.000 servidores, mas atualmente conta com apenas 600.
Questionada sobre a legalidade do ouro supostamente produzido nas oito PLGs consideradas “fantasmas” pelo MPF, a FD Gold afirma que “não existe mecanismo no mercado que possa atestar a real origem mineral”.
A nota emitida pela FD Gold informa ainda que “sempre vamos depender da declaração de origem e boa-fé do cliente vendedor”. É uma referência ao artigo 39 da lei 12.844/2013, segundo o qual cabia ao produtor atestar a legalidade do metal. Na prática, bastava ao garimpeiro dizer que o minério tinha procedência regular para comercializá-lo.
Em abril deste ano, o artigo 39 foi suspenso pelo Supremo Tribunal Federal sob o argumento de que serviria de “incentivo à comercialização de ouro originário de garimpo ilegal”.
Uma das oito PLGs apontadas como fantasmas está registrada em nome da esposa de Frederico Sobrinho. O próprio empresário assina uma nota fiscal referente à venda de 343 gramas de minério (R$ 105 mil) supostamente produzido no garimpo e vendido à sua distribuidora de ouro, a FD Gold, em maio de 2020.
Perguntada sobre a atividade na PLG em nome da esposa de Dirceu Sobrinho, a assessoria de imprensa da FD Gold enviou imagens de satélite para demonstrar o impacto ambiental no local e provar que o garimpo não seria fantasma. Porém, as imagens referem-se a 2023 e não a 2020, ano em que o ouro foi apreendido. Naquela época, o MPF sustenta que não havia indícios de exploração na área.
‘Excesso de prazo’
O material apreendido em 2020 foi remetido para a delegacia da Polícia Federal em Barra do Garças (MT), a mais próxima ao local da ocorrência.
No dia seguinte à apreensão, o advogado da FD Gold, Hamilton Ferreira da Silva Junior, levou até a delegacia novas notas fiscais, alegando que os documentos diziam respeito ao ouro encontrado no avião.
Ainda segundo os autos da investigação, o advogado teria dito que as notas haviam sido deixadas dentro da aeronave pelos policiais responsáveis pela operação. Os agentes, por sua vez, garantem ter levado todo o material.
“O fato de a documentação ter sido apresentada posteriormente pelo advogado Hamilton Ferreira da Silva Júnior não tem o condão de justificar a mercadoria”, escreveu o delegado da PF, Mario Sergio Ribeiro de Oliveira, em relatório de julho de 2020.
“Se fosse assim, a cada apreensão de ouro irregular bastaria ao interessado a confecção a posteriori de papel para justificar a mercadoria”, prossegue o texto.
O delegado aponta ainda que “é provável que tal documentação tenha sido confeccionada após a apreensão ou estivesse em outro local a fim de justificar outra carga de ouro”.
A FD Gold diz que a afirmação é “falsa” e que os documentos estavam no bagageiro da aeronave para distribuir o peso nas extremidades do avião.
O carregamento de minério e as notas fiscais foram enviados para perícia. O laudo, de dezembro de 2020, atesta que o material apreendido de fato é ouro, mas não é conclusivo quanto à origem do metal.
Dois anos e meio após a apreensão, e sem que houvesse uma conclusão sobre a ilegalidade ou não da origem do material, o juiz federal Saulo Casali Bahia entendeu que as investigações não encontraram “elementos concretos para formação da culpa”, revelando um “excesso de prazo”. Por isso, determinou em dezembro do ano passado que o ouro fosse devolvido a Frederico Sobrinho.
A nota da FD Gold afirma que não existe um mecanismo no mercado capaz de atestar a real origem mineral.
O perito criminal e geólogo Fábio Augusto da Silva Salvador explica, porém, que é possível atestar a procedência do ouro em poucos dias.
“Atualmente, através de exames em equipamentos disponíveis em algumas unidades de criminalística da Polícia Federal é possível, através de análises que podem ser feitas em poucos dias, caracterizar o ouro apreendido como se fosse de origem garimpeira, de reciclagem ou de refino sofisticado”, diz.
Irregularidades na operação da FD Gold também foram apontadas por um levantamento feito por pesquisadores da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Realizado a pedido do MPF-Pará e publicado em 2021, o estudo analisou a produção de ouro no país entre 2019 e 2020.
Das 179 toneladas de ouro produzidas no período, ao menos 49 vieram de regiões com “evidências de irregularidades”, como exploração além dos limites permitidos e garimpos sem sinais de atividade mineradora. Parte desse ouro teria sido adquirido pela FD Gold.
Com base nesses dados, o MPF denunciou em agosto de 2021 as três principais compradoras de ouro do país, incluindo a empresa de Frederico Sobrinho, pela aquisição de 4,3 toneladas de minério “extraído de garimpos ilegais na região sudoeste do Pará”, nos municípios de Itaituba, Jacareacanga e Novo Progresso.
A ANM afirma que tem atuado para combater os garimpos fantasmas “melhorando os sistemas e bases de dados para fiscalização e buscando a cooperação com as outras autoridades”
Fonte: CartaCapital
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